22 abril, 2010

Memória

Memória
Goethe – Institut Inter Nationes
Ano 45/2003/ Número 86

"Ao longo do tempo alternam-se obscuridade e luz, e o esquecimento possui em nossa vida uma porção tão grande como a lembrança. De nossa felicidade conservamos somente uma impressão superficial, e mesmo os golpes mais dolorosos logo cicatrizam de novo. Nossos sentidos não estão capacitados a enfrentar o extremo, e o sofrimento acaba conosco ou consigo mesmo."
Sir Thomas Browne, 1658.

Aleida Assmann
A gramática da memória coletiva. O Estado, a Igreja ou uma empresa não têm memória. As instituições e entidades “criam” para si uma memória recorrendo a símbolos, textos, imagens, ritos, práticas e monumentos.

É preciso constatar que a capacidade de lembrar-se, por mais falível que seja, é que faz do ser humano um ser humano. Sem ela, não seríamos capazes de construir uma identidade própria nem de nos comunicar com outros enquanto indivíduos. As lembranças biográficas são indispensáveis, já que são a matéria da qual se constituem as experiências, os relacionamentos e sobretudo a imagem da própria identidade. Apenas uma pequena parcela de nossa memória está elaborada lingüisticamente, constituindo a espinha dorsal de uma biografia implícita. A maior parte de nossas recordações está latente dentro de nós e espera ser despertada por um ensejo externo. Essas lembranças tornam-se então repentinamente conscientes, adquirem de novo uma presença sensorial, podendo sob condições propícias ser expressas em palavras e incluídas no acervo de um repertório disponível. Às memórias indisponíveis e às disponíveis, acrescentem-se ainda as inacessíveis, que são mantidas cerradas sob a vigilância de guardas chamados recalque ou trauma. Estas lembranças são dolorosas ou vergonhosas demais para poderem ser resgatadas para a superfície da consciência sem ajuda de fora.

Em termos gerais, podemos distinguir certas características válidas para as lembranças individuais. Primeiro: elas são fundamentalmente perspectivas, ou seja, de caráter subjetivo e, portanto, impermutáveis e intransferíveis. A história familiar, por exemplo, é lembrada a partir da perspectiva do irmão mais velho de maneira significantemente diferente da do irmão mais novo. Segundo: elas não existem isoladamente, mas estão ligadas às lembranças de outros. Por meio de sua estrutura baseada em cruzamento, superposição e conectividade, elas se confirmam mutuamente. Com isso, não só adquirem coerência e verossimilhança, como também favorecem a ligação e o espírito comunitário. Terceiro: elas são fundamentalmente fragmentárias, limitadas e informes. O que surge num lampejo em forma de lembrança são em regra apenas fragmentos, momentos desligados, sem um antes e um depois. Apenas através de narrativas é que eles adquirem uma forma e estrutura, por meio das quais são ao mesmo tempo completados e estabilizados. Quarto: são voláteis e instáveis. Algumas recordações modificam-se juntamente com a pessoa e suas condições de vida, com o correr do tempo, outras desvanecem-se ou perdem-se por completo. Especialmente as estruturas relativas à relevância e os padrões de avaliação transformam-se ao longo da vida, de modo que o que parecia relevante perde-se aos poucos em importância e o que era secundário pode adquirir significado, retrospectivamente. As lembranças compiladas em narrativas e freqüentemente repetidas são as que melhor se conservam, mas se dissolvem naturalmente com a morte da pessoa que se recorda.

O trajeto da memória individual para a coletiva não é o de uma simples conclusão analógica. Instituições e corporações não dispõem de uma capacidade de recordação do tipo da memória individual, pois nelas não existe nada que corresponda ao fundamento biológico, disposição antropológica e mecanismos naturais desta. Por isso é que sempre se levantaram vozes alertando para o conceito da memória coletiva como sendo uma pura mistificação. Tal ceticismo não deveria, contudo, fazer com que se eliminasse o conceito de vez, já que ele tem em vista fenômenos perfeitamente palpáveis pelo método empírico e que se distinguem claramente das condições da memória individual. Instituições e corporações como as nações, os Estados, a Igreja ou uma empresa não tem memória, elas criam para si uma memória, servindo-se para tal de símbolos e sinais memoriais, textos, imagens, ritos, práticas, lugares e monumentos. Com essa memória, as instituições e corporações criam ao mesmo tempo uma identidade para si próprias. Essa memória não contém mais momentos espontâneos e involuntários, por ser construída de maneira intencional e simbólica. É uma memória da vontade e da seleção calculada. A construção da memória cultural distingue-se significativamente da memória individual em três das características apresentadas. Ela não tem uma estrutura apropriada para o estabelecimento de conexões e a formação de redes, tendendo pelo contrário a formar uma unidade coesa. A memória de uma nação, por exemplo, não está ligada à de seus vizinhos; não toma conhecimento de que do outro lado da fronteira sejam escolhidos outros pontos de referência históricos, ou de que os mesmos acontecimentos do passado sejam enfocados de forma totalmente diferente. Tampouco ela é fragmentada, mas fundamenta-se em narrativas que, à semelhança de mitos e lendas, têm uma estrutura narrativa e transportam uma mensagem clara. Por fim, ela não existe em forma de elemento instável e volátil, mas baseia-se em sinais simbólicos que fixam, generalizam e uniformizam a lembrança, tornando-a passível de ser transmitida para além dos limites das gerações.
Mas, ao lado dessas diferenças claras, existe também um importante ponto em comum. Tanto a memória individual quanto a coletiva são determinadas por uma perspectiva definida. Ambas caracterizam-se por não terem em vista ser tão completas quanto possível e por não poderem assimilar de tudo, baseando-se numa seleção estrita. Por isso é que o esquecimento é parte constitutiva tanto da memória individual quanto da coletiva. Nietzsche utilizou um conceito da óptica para descrever esse caráter fundamentalmente perspectivo da memória. Falou de “horizonte”, referindo-se ao limite do campo de visão determinado pelo ponto de vista. Além do mais, Nietzsche entendia por “força plástica” da memória a capacidade de estabelecer um limite o mais claro possível entre a lembrança e o esquecimento, um limite que separa o importante do não importante, ou melhor, o que é útil à vida do que não lhe é útil. Sem esse filtro, dizia Nietzsche, não poderia haver a formação de identidade (ele falava de “caráter”) nem uma clara orientação para o modo de agir. Em sua opinião, reservatórios excessivamente cheios de conhecimentos levariam a uma desintegração da memória e, portanto, à perda de identidade.

Não é difícil determinar quais critérios seletivos foram determinantes para a formação de uma memória coletiva. Neste sentido, é especialmente característica a construção de uma memória nacional. Trata-se no caso, regularmente, dos pontos de referência na história que fortalece a auto imagem e que harmonizam com certas metas de ação. Mas derrotas também podem tornar-se pontos de referência centrais na história, desde que possam ser integradas numa narrativa martirológica do herói trágico. Derrotas são comemoradas com grande patos e pompa cerimonial, quando uma nação fundamenta sua identidade na consciência do sacrifício, quando a lembrança de uma injustiça sofrida precisa ser conservada a fim de legitimar reivindicações e mobilizar resistência heróica. Um exemplo são os israelenses, que fizeram da fortaleza de Massda, caída durante o domínio dos romanos, um memorial político de seu novo Estado. Neste caso, a lembrança da derrota tem uma força mobilizadora. Ela não debilita, mas sim fortalece, por estar ligada à advertência: “Nunca mais ser vítima”. Por isso, a memória coletiva de uma nação é receptiva tanto para momentos históricos de sublimidade quanto de humilhação, desde que eles possam ser elaborados na semântica de uma imagem histórica de heroísmo.

O que, pelo contrário, não é admitido a entrar para a memória são momentos de culpa e vergonha, visto que estes não podem ser integrados numa auto-imagem coletiva positiva. Até há pouco tempo, dificilmente se podia falar de experiências traumáticas da história, porque não havia para elas padrões culturais de elaboração. É o caso dos nativos de diversos continentes, perseguidos e extintos; dos africanos levados como escravos; e dos judeus vítimas do genocídio no contexto da II Guerra Mundial. Somente aos poucos vão se constituindo novas formas de lembrança coletiva que na cabem mais nos padrões de uma posterior heroificação e atribuição de sentido, mas que são elaboradas para o reconhecimento universal do sofrimento e a superação terapêutica de seqüelas paralisantes. Neste contexto chega-se também a uma nova elaboração da culpa dos algozes na lembrança de seus descendentes, que não mais ignoram os capítulos sombrios de sua história por meio do esquecimento, senão os estabilizam na memória coletiva e os integram na auto-imagem da nação.

Isto significa que, de umas décadas para cá, regras fundamentais na gramática da memória coletiva mudaram. A lei básica da memória – o princípio da seleção e da criação de um horizonte – continua válida, porém a linha divisória que separava o que é útil à vida do que não lhe é útil tornou-se problemática enquanto critério único de seleção. A honra – triunfante ou humilhada -, que por séculos determinou o código da memória nacional, concedendo-lhe a estrutura básica de seleção do que seja digno de ser recordado, no futuro não poderá continuar sendo o único padrão de avaliação das lembranças. Isto está relacionado com a nova consciência das conseqüências a longo prazo de experiências históricas traumáticas, que criou novas precondições para a organização da memória nacional, válidas tanto para as vítimas quanto para os algozes. Faz parte das principais inovações que agora não existe uma ligação intrínseca entre perdoar e esquecer, da mesma forma que ela não existe entre lembrar e vingar. O que vale muito mais é que a lembrança conjunta de algozes e vítimas constitui um melhor fundamento para a coexistência pacífica do que o esquecimento conjunto. No caso de uma lembrança traumatizada como a dos sobreviventes do Holocausto, a máxima da força curativa do esquecimento cedeu lugar à reivindicação ética da lembrança conjunta.

Vivemos numa época em que os parâmetros da lembrança e do esquecimento estão sendo submetidos a uma revisão fundamental. Tudo isso é reforçado pelo fato de que, com a passagem para o novo milênio, entramos numa época do transnacionalismo. Na era das nações, as memórias nacionais construíam-se na Europa sem levar os Estados vizinhos em consideração. Num país comemorava-se o que um outro tentava esquecer; num se glorificava o que era injuriado num outro. A construção perspectiva das memórias nacionais fazia com que uma se chocasse com a outra, originando uma problemática substância inflamável que só podia ser neutralizada por meio de ignorância mútua.
Na sociedade mundial, as nações se tornaram mais próximas, o que tem conseqüências também para o solipsismo da construção de suas memórias. As nações hoje não apenas estão mais conectadas pela globalização tecnológica, como também mais ligadas umas às outras por uma globalização ética. Portador deste desenvolvimento é um grupo, crescente em tamanho e importância, de observadores não diretamente envolvidos, os quais tentam difundir através dos novos canais de comunicação normas universalistas e padrões interculturais. Esta nova perspectiva transcultural de observação não dissolve de maneira nenhuma os horizontes específicos das memórias coletivas e das formações culturais, mas ela os tem em seu campo de visão e questiona criticamente a respeito de suas conseqüências prejudiciais para as relações interestatais e interculturais. Em função da crítica observação mútua, as nações não se podem mais permitir formações de memórias agressivas e revanchistas. Acrescente-se a isso reivindicações de reconhecimento das vítimas da própria história. Depois que se evidenciou quão importante é a participação das construções da memória coletiva na configuração política do futuro, levanta-se a reivindicação de uma auto-reflexão crítica dessas construções da memória. A questão não pode ser a dissolução das construções da memória coletiva – elas são indispensáveis e continuam sendo fundamento da formação de identidade e da orientação para o modo de agir -; trata-se apenas de tornar inofensivos seus potenciais perigosos.(Primeira parte de um texto extraído do catálogo A Memória da Arte. História e Lembrança na Arte Contemporânea, Museu Histórico e Schirn Kunsthalle, Frankfurt, 2000)

Aleida Assmann é professora de Anglística e de Teoria Literária na Universidade de Constança. É especializada em história dos meios de comunicação, em especial da escrita, história da leitura e memória cultural. Publicou em 1999 Erinnerungsräume. Formen und Wandlungen dês kulturellen Gedächtnisses (Ed. Beck, Munique).

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